inacessibilidade do outro – Aftersun de Charlotte Wells

escrito em 12 de fevereiro de 2023.

1. O filme apela pra uma nostalgia e esse apelo funciona muito bem. Em outros filmes, é uma técnica de pastiche que pasteuriza a imagem. Como se o clichê (e seu “estilo) de uma década se sobrepusesse à forma. Não é o caso de “Aftersun”. Os acenos à década de 1990, que nos pegam de jeito mesmo, aparecem como traços de memória, envoltos, porém, em outro princípio formal, que não é o do pastiche homogeneizante. Obedece ao luto, não ao “estilo” da época. Por isso funciona.

2. O filme joga com a inacessibilidade do outro / do passado. Não temos acesso pleno ao que o outro pensa, vive, sente. Temos indícios, pistas, mas não dados. Para nós, o outro não é um dado – é um rastro de si. E o mesmo se dá com o passado, inclusive com o nosso “eu” do passado, que é um outro também. Essa inacessibilidade aparece aqui ou ali indicada pelo jogo com as mídias. Quando a primeira cena do filme retorna e é revisitada de outra perspectiva, temos isso num jogo das mídias (a memória, a TV, a câmera, o espelho) como um jogo de reflexos e transparências, de fantasmas.

3. Achei muito acertada a escolha das músicas. A cena do karaokê, putz. A Frankie Corio, que faz a Sophie nova, tá impecável no trabalho de corpo. Brilha no constrangimento. O Paul Meskal, que faz o pai Calum, na dança. Você tem certeza que ele está perdido quando dança.

4. O filme também tem uma lição valiosa pras relações. Dois não são um, em todas as formas de amor. E isso vale para pai e filha, que é a relação colocada em cena no filme. Dois não se fundem. A gente geralmente acha que essa é uma lição apenas para os pares amorosos, mas vale pra pais e filhos. A fantasia da Sophie, de que partilha o mesmo céu que o pai, retorna no pesadelo do que é inexplicável na revisitação dessas cenas de memória partilhadas com ele. A fantasia do pai de que a filha pode contar tudo, na cena em que conversam na água, retorna como pesadelo na forma com que o pai não consegue compartilhar seu sofrimento com a filha.

5. É um filme em que a memória é uma atmosfera, e não um dado. O passado não é uma transparência nem uma coleção de pessoas e objetos que possuímos. Ele é uma atmosfera que respiramos.