opacidade do outro, alguns poemas de Mariana Godoy

para algumas pessoas ficar adulto e envelhecer é ganhar consistência. claro, perguntam para as crianças: o que você quer ser quando crescer? quando ganhar tônus, consistência, forma, sei lá o quê. pra mim, ficar adulto e envelhecer é uma experiência de perda. nossa história não nos dá volume exatamente. nos dá alguma coisa, é certo. mas não é volume. a experiência da rememoração em análise é frequentemente aquela de me encontrar não exatamente comigo, mas comigo enquanto um outro. um comigo cheio de sombras, projeções, cheio de outro. e me encontrar com os outros estando comigo.

o livro da mariana godoy me fez pensar nessas coisas. na opacidade da memória. na opacidade de nós mesmos. quem somos nós? quem são aqueles com quem vivemos? o que foi isso exatamente que vivemos na infância, ontem, hoje pela manhã? envelhecer é ver tudo perder a consistência. e ganhar, progressivamente, a aparência de fantasma. será que é isso mesmo? não sei.

acho comovente “separação total de bens”. chegamos a ele com uma expectativa de um discurso sobre separação. descobrimos ao longo dele que se trata de um discurso que atravessa a mente da criança e que é revisitado na lembrança do pai morto. a filha fica, com a mãe e com os vivos. o pai visita as filhas regularmente, como fantasma. como holograma. e vai fazendo desaniversários. essa negatividade do “des-” atravessa o livro como uma espinha. mas a espinha não tem consistência. a memória também engana. porque ela se fabrica dos afetos. e os afetos não são as coisas. mas se ligam a elas com uma aderência pegajosa.

acho que é por isso também que tudo é atuação aqui. esses poemas não dizem o passado: atuam-no. agem por ele. agem de novo. descem em seu lugar às cavernas escuras da memória sem lâmpada. não tem mariana no fundo do livro. tem a atuação dos poemas. teatro dos mortos? não, quem faz isso são os vivos. os vivos ainda podem atuar. então os fantasmas são os vivos, que olham para os mortos à sua imagem e semelhança. fabricam, nos mortos, fantasmas. e lhes atribuem o que é dos vivos: aderência pegajosa e inconsistência.