por ocasião da morte de Gal Costa

escrito em 9 de novembro de 2022.

Quando comecei a faculdade eu escutava tudo da Gal. Ela mexia comigo. Ouvi-la era me perder, sei lá. Eu tinha uma vontade imensa de largar tudo quando ouvia a sua voz. Ao escutar “Mamãe, coragem”, do Torquato, na voz dela, eu quase me desfazia numa mistura esquisitíssima de coragem e melancolia: “mamãe mamãe não chore / eu nunca mais vou voltar por aí (…) mamãe mamãe não chore / não chore nunca mais não adianta / eu tenho um beijo preso na garganta / eu tenho um jeito de quem não se espanta / braço de ouro vale dez milhões / eu tenho corações fora do peito / mamãe não chore não tem jeito”.

Sempre achei a voz da Gal meio ambivalente: alternando entre o comedimento melancólico (nas canções de Domingo, por exemplo) e a mania explosiva (como os gritos em Divino Maravilhoso). Talvez por isso a sua voz sempre trouxe pra mim a marca dos extremos e das desmedidas. Era a sua desproporção que me afetava. Uma voz que parecia “errada”, que estava à disposição do “erro”, quer dizer, do caminho, da errância. Isso explode muito claramente na versão daquele show de 71 (Gal Fa-Tal) pra canção de Waly, “Vapor barato”. A alternância entre o comedimento dos primeiros versos (“ó sim…”) e os uivos depois dos refrões (depois de “ó minha honey baby”), que manifestam como ninguém que ser alguém é divino é maravilhoso é alegria é perigo… é errância.

Ser alguém dói pra caramba e é um êxtase absurdo. É isso que eu sentia em Gal Costa. Que eu sinto, claro, sua voz continua vibrando, está tocando agora aqui em casa. Pode ir de um ponto a outro da existência sem conhecer as mediações. Na média não tem existência. Tem outra coisa. A vida é dos extremos.

“Meu nome é Gal”. E era também Maria da Graça. A Gracinha, pros amigos dela. Gal Fatal para uma geração antes da minha. Gal extrema pra mim. Gal desmedida. Gal gigante e também pequenininha. Vaca profana. Quantas vezes não dançamos todos ao som de sua voz? Quantas vezes não bebemos do seu leite? Quantas vezes não nos levou às lágrimas e aos gritos?

Que dor, que falta vai fazer. E que presença na vida. Que presença, Gal! Você vai embora e alguma coisa sua fica.

*

Tanto Caetano Veloso como Gilberto Gil falaram, em seus primeiros depoimentos sobre a Gal, depois de sua morte, e sobre a voz dela.

É uma voz ampla. Não apenas um repertório amplo. Gal nasceu na música como bossa nova, com a voz cristalina que João Gilberto admirava. Depois, em seu primeiro disco sozinha, passou a incluir pequenos gemidos nas canções, acrescentando alguma dose de ruído àquele canto.

Aos improvisos que aprendeu também com o jazz, somou-se, na fase final da Tropicalia, a opção rascante do que aprendeu com o rock e com a Janes Joplin. Emprestou essa combinação (de Coração Vagabundo, Sebastiana e Divino Maravilhoso) à marginalia.

Essa amplitude se condensa no Fa-Tal. Num momento em que o país mergulhava em treva sinistra, com o endurecimento ainda maior da ditadura em 68, o show com Waly se apresentava como expressão profunda: não da Gal ela mesma, mas daqueles brasis todos, que ela cantou (e cantaria depois), “melancolizados”.

Colocaria tudo isso a serviço do mercado também, do comércio, na decada de 80. Como notou Gil, agenda tropicalista de não temer as estruturas.

E fez tudo isso dissolvendo a dicotomia usual entre alma (voz, técnica, etc) e corpo (erotização, improviso, desgoverno).

Com isso dissolveu também aquela fronteira que separa dualismos ocidentais: uniu ruído e fala, natureza e cultura, barbárie e civilização, animalidade e humanidade, usando a voz.

A versão de vapor barato no Fa-tal…

Aceitou os epítetos. A amplitude aqui não é de um eu profundo, mas de um receptáculo: deixou baixar diferentes nós em uma gal fatal, outra tropical, outra marginal, outra profana etc etc.

De novo, tocou os extremos. Não fez a sua média, e por isso quando foi ao mercado muito mais modificou o mercado do que foi por ele pautada. Tudo isso em uma tática erótica. Apostando no encontro.

No encontro com os outros. Início e final de carreira coletivos. Fez toda a vida com o passado e o presente nas mãos. Cantou quem fazia música no seu tempo. Sempre foi do time do pão pros vivos.

Ontem a aula na pós foi uma homenagem a ela.

Gal no palco. O dramaturgo escreve “sai Gal”. Mas Gal não sai. “Sai Gal”. Mas Gal não sai. Vai ficar um tempo ainda.