por ocasião da morte de Jean-Luc Godard

escrito em 13 de setembro de 2022.

22 anos. sou apresentado a pierrot le fou do godard com o título o demônio das onze horas. estou lendo a temporada no inferno de rimbaud, ouvindo radiohead e gostando de belchior e de clarice lispector. e acho que todas essas coisas se comunicam de um jeito que não sei explicar. escrevo coisas sem sentido. ouço e não entendo, vejo e não entendo, vivo e não entendo.

24 anos. assisto a chinesa. não entendo quase nada, mas vejo as imagens vermelhas, muito vermelhas. que me dizem para confrontar ideias vagas com imagens claras. nenhuma imagem ali é clara para mim. não para um rapaz latino-americano que não entende quase nada de cinema. e ouço a canção que soa “mao mao” como se ela fosse um convite. para onde?

26 anos. vejo alphaville com amigos. escrevo cada vez pior. tento aprender algo com essas imagens que não compreendo. godard retorna sempre como esse ponto de incompreensão. assisto aos filmes como se a uma aula que me ensinasse que o ponto de incomunicabilidade total se encontra com a comunicação mais honesta possível. godard é meu professor de português. depois dos poemas de paul eluard eu jogo um conjunto de mais de 100 arquivos no computador no lixo. e me engano: penso ingenuamente que recomeçar é possível. ser ingênuo é bom também.

não sei quantos anos tenho, mas assisto a uma aula do patrick que conta do filme ensaio carta para jane. tenho um arrepio. no mesmo dia, assisto também ao acossado. na carta fico com a relação entre as palavras e as imagens. no acossado, não consigo esquecer o gesto herdado entre personagens. fico uns dias passando o dedo na boca, e me sentindo meio ridículo por fazer aquilo. as imagens têm poder. o gesto e a palavra cindem a imagem. lições de política.

28 anos. adeus à linguagem no cinema. há uma cena em que o homem e a mulher discutem e se contrapõem. como é 3d, a imagem é uma superposição de duas imagens unidas pelas lentes construídas de modo a criar a impressão tridimensional. godard faz com que os personagens discutindo se cruzem na sala, cada um em uma lente. sou forçado a ficar vesgo quando passam um pelo outro. para ver com clareza, preciso fechar um dos olhos. godard me ensina política. como?

obrigado professor.