9 de maio de 2023.
1. A trilha sonora de Georges Delerue é um estribilho horroroso. Quer dizer, é maravilhosa, mas desde o início afunda os nossos corações naquela sensação de que vamos testemunhar algo terrível. Anne Carson fala sobre isso com Eurípedes e Beckett. Ou algo parecido com isso. Essa sensação de “ó não lá vamos nós de novo”. O terrível, em Godard, somos sempre nós mesmos. Mas não em um sentido metafísico – a questão não é “humana”. É num sentido histórico. É a nossa vida, as nossas cidades, os nossos filmes, as nossas democracias, os ocidentes, é que são terríveis.
Catastróficos.
Mas ainda há vida, beleza, tudo isso está aqui. Essa trilha do Delerue é isso. Ela te afunda. Você quer chorar desde a primeira vez que ela aparece e não sabe ainda se são boas ou más notícias que ela anuncia.
2. Mas é um filme sobre cinema. E sobre arte. Filmar, escrever, fabricar palavras e imagens. Começa e termina com aquele aparato técnico aparecendo diante de nós como se a dizer que o filme não é simplesmente sobre o artifício e a quebra da quarta parede, mas algo mais: é sobre posição. Sobre tomar posição.

3. Três estágios da arte posições sobre o fazer artístico convivem no filme. Três mais um na verdade. Todos eles precisam do ponto de vista do produtor norte-americano (aquele que fala aquela reprise de Goebbels: “quando ouço falar em cultura saco logo… o meu revólver o meu talão de cheques”) para existir. Esse é o primeiro ponto, então, de onde emana o filme. Arte como mercadoria e poder – como fetiche. É a ele que se liga a posição desprezível do escritor Paul, que vende sua arte e está disposto a colocar a sua mulher na negociação por meio de acordos tácitos.
4. Camille entende tudo desde o início. Ela e Lang entendem o que está me jogo. Mas Lang está velho e conhece outras formas de resistir. Aliás, essa opção também lhe é dada pelo privilégio que compartilha no mundo patriarcal em cena. Camille é oferecida como sacrifício (ao qual resiste fortemente) a que seu marido a empurra, mas o jogo de poderes na estrutura patriarcal é muito forte, o que explica o seu desfecho. Camille ocupa aqui uma posição intermediária entre essas duas posições e a terceira, ocupada por Fritz Lang.
5. Lang e a tradutora (o nome agora me escapa) ocupam um lugar de estrangeiridade. Ela é uma comerciante de línguas, faz o delivery dos sentidos. E nos mostra, no descompasso entre o que se diz, o que se diz que se diz e o que escuta, que a linguagem tem um grau de opacidade muito grande. É nesse grau de opacidade que ainda se pode fazer algo de estrangeiro, mesmo quando falamos a mesma língua.
6. Lang é um anjo, no sentido homérico, não no cristão: faz o trânsito divino, entre uma arte perdida e a nova. De uma a outra parte, a terceira concepção de arte aparece, e com ela mais uma é evocada. Arte como trânsito entre os outros, que nos miram do passado, das ruínas do passado que restaram (as estátuas que representam o mundo homérico, os cartazes que representam uma era de ouro do cinema) – mais a arte do passado ela mesma, inacessível.
7. Essa “arte do passado ela mesma” é inacessível e no entanto procurada por todas as outras posições. Ela é um espectro formado pela diferença de posições ocupadas. E todas elas são experimentadas por Godard, que não assume a posição purista. Bem, nem todas, penso que ele rejeita uma. A posição desprezível de Paul é a que Godard não assume. Experimenta, assim, realizar fetiche e trânsito, e é nesse descompasso entre duas posições irreconciliáveis que seu filme ganha caráter ensaístico como discurso sobre o próprio cinema e sua história até ali.
8. O que permite Godard fazer as duas coisas é ocupar a posição de Camille. É ela quem fala na câmera de Godard. Então ao mesmo tempo em que ela é colocada em situação de objeto (pela câmera, pelo produtor, pelo marido, por quase todos, menos Lang e a secretária), é ela quem se revela como sujeito do enredo e do juízo que o filme emite.

9. Mas não me parece que o filme seja heroico. Talvez nem tivesse como sê-lo. A posição de Camille é mais trágica que heróica. E é a ela que se concede a última palavra. A última cena termina com Lang filmando Odisseu mirando o mar. O verso de Dante citado em outra parte do filme, mais no início, dizia algo como “considerem de onde vêm / não foram feitos para viver como brutos / mas para buscar virtude e saber”. Ele não é dito de novo no fim, mas é como se o ouvíssemos às costas de Odisseu / Lang / Godard. Atrás dele(s), Penélope-Camille, de pescoço quebrado, avisa que é ela quem tem a agulha da história na mão.